17/06/10

HOMEOPATIA: DO MITO À REALIDADE


Quando, em 1995, fui chamado a cumprir o Serviço Militar, na altura ainda obrigatório, aproveitei a interrupção laboral forçada para fazer uma pesquisa bibliográfica sobre a homeopatia. Desse estudo, realizado com espírito aberto e sem preconceitos, resultou o artigo que hoje publico, cuja versão integral com as respetivas referências bibliográficas poderá ser encontrada na revista Arquivos de Medicina (11: 59-61, 1997), onde foi originalmente publicado:

Na era do laser e da telemedicina, assistimos a um crescente interesse pelas chamadas medicinas alternativas, sendo a homeopatia uma das mais populares, embora relativamente desconhecida entre a classe médica. Pretendemos neste artigo fazer uma reflexão séria e isenta acerca desta prática, tendo em conta a aprovação, em Maio de 1995 (contrariando a posição defendida pela Ordem dos Médicos), do decreto-lei nº94/95, que legaliza a comercialização, no nosso país, de produtos homeopáticos para uso humano.
 
Curar o mal com o mal
 
A palavra “homeopatia” engloba duas palavras gregas - homoios (semelhante) e pathos (doença). A noção fundamental da prescrição homeopática encontra-se resumida no aforismo latino “similia similibus curantur”, da autoria do seu fundador (Samuel Hahnemann), que significa: “o semelhante cura o semelhante”. É o chamado princípio da similitude, segundo o qual uma substância capaz de, no seu estado natural, provocar determinados sintomas num indivíduo saudável pode tratar, quando usada em doses reduzidas, aqueles mesmos sintomas num indivíduo doente.
 
Vamos procurar explicar este princípio recorrendo a alguns exemplos. É do conhecimento geral que a cebola é irritante para os olhos. Em pessoas sensíveis, estes podem ficar congestionados, produzindo abundantes lágrimas. Sendo estas manifestações idênticas às que se verificam nas vulgares constipações, o extrato de cebola é utilizado na preparação de produtos homeopáticos usados no “tratamento” das constipações.
 
Um outro exemplo: O manuseamento frequente de gasolina ou outros derivados do petróleo pode ocasionar, em indivíduos suscetíveis, um eczema cutâneo irritativo. Assim sendo, o produto homeopático mais usado para “tratar” este tipo de afeções é, precisamente, a gasolina.
 
A maior parte das substâncias utilizadas no fabrico de produtos homeopáticos é proveniente de plantas, minerais, ou mesmo venenos (p. e. arsénico, veneno de serpente, etc.). Se muitas destas substâncias fossem usadas no seu estado natural provocariam a morte. Assim, um segundo princípio fundamental da homeopatia é o da infinitesimalidade ou das doses mínimas. Contrariando o senso comum, afirmam que toda a substância que, em dose ponderal, é capaz de provocar determinada sintomatologia no indivíduo são, pode tratar esses mesmos sintomas quando usada em doses infinitesimais. Por outras palavras, quanto mais diluída a substância original (chamada tintura-mãe), maior a sua atividade e eficácia.
 
Para a obtenção do produto final, procede-se à diluição da tintura-mãe, a partir da qual é retirado um volume e misturado com 99 volumes de solvente (água pura ou álcool), obtendo-se uma primeira diluição centesimal (1C), também chamada primeiro centesimal hahnemanniano ou 1CH. Desta diluição inicial é retirado novo volume e misturado novamente com 99 volumes de água, obtendo-se uma segunda diluição centesimal (2C), que representa 1/100 da precedente. E assim sucessivamente, durante 12, 30 ou mais vezes. Uma diluição 12C, frequentemente usada, representa a mistura de um mililitro da substância original com 100.000.000.000 mililitros de solvente. Alguns homeopatas vão ainda mais longe, usando diluições de 30C, preferidas pelo próprio Hahnemann.
 
Se a substância natural de base for insolúvel, procede-se à sua trituração em pó de lactose também na proporção de 1 para 100. Todas as diluições são intercaladas pela agitação ritmada e vigorosa da solução, tendo em vista a sua “dinamização” ou “potenciação”.
 
Após a nona diluição centesimal (9C), mesmo as análises mais delicadas, utilizando produtos radioativos, não permitem já detetar qualquer molécula da substância natural de base no produto homeopático final. Confrontados com os resultados dessas pesquisas da Organização Mundial de Saúde, os homeopatas argumentam que “o efeito curativo não é material, mas envolve um outro fator - a energia”, a que também chamam “força vital”, resultante da agitação vigorosa das soluções.
 
Para chegar a alguma conclusão acerca de qual o produto mais indicado para determinada situação, o homeopata regista todos os sintomas e queixas referidos pelo doente, mesmo os mais triviais e incongruentes, tais como a recente aversão a um alimento, um sonho repetitivo ou mesmo as esperanças do paciente quanto ao futuro. Recorre então ao receituário homeopático, de modo a encontrar uma substância que produza os “sintomas” que mais se assemelhem aos transmitidos pelo doente. No entanto, a duas pessoas com os mesmos sintomas poderão não ser prescritos os mesmos produtos, que poderão também variar de ano para ano, ainda que a doença seja a mesma. Isto porque a personalidade individual do paciente e seu estado de espírito, na altura da consulta, são considerados essenciais na determinação da substância mais eficaz.
 
Que verdade?
 
Até ao momento, não se encontrou qualquer evidência, cientificamente comprovada, do mecanismo de ação e eficácia da homeopatia. Os princípios em que se baseia contrariam o senso comum, as leis da natureza e os conceitos subjacentes à ciência moderna e à medicina convencional.
 
Refira-se, a este propósito, o veredicto da prestigiada Academia de Medicina Francesa, num relatório sobre as chamadas medicinas paralelas, feito a pedido do Ministério de Saúde desse país, em 1987. O Prof. H. Gounelle de Pontanel, sintetizando todos os estudos, realizados por especialistas de diferentes áreas, concluiu não terem sido encontradas quaisquer bases científicas válidas em favor da eficácia terapêutica dos produtos homeopáticos.
 
No ano anterior, a Associação Médica Britânica tinha já concluído que a única explicação plausível para o relativo sucesso, em algumas situações, dos produtos homeopáticos, se devia simplesmente ao chamado efeito placebo. Este efeito traduz a ação de um produto não ativo, do ponto de vista farmacológico, que em determinadas situações, em alguns doentes, produz um efeito real benéfico para a situação clínica em causa. Para isso contribuem diversos fatores, nomeadamente do foro psicológico, tais como a confiança do doente no produto, a convicção do médico ou uma boa relação médico-doente, assim como o próprio aspeto dos medicamentos ou um esquema posológico invulgar.
 
Vários estudos posteriores têm sido realizados e publicados em revistas médicas e científicas. Alguns deles, envolvendo homeopatas, concluíram ser a homeopatia terapêutica eventualmente eficaz de patologias como a febre dos fenos, asma ou diarreia aguda nas crianças. No entanto, estudos repetidos por outros autores em outros centros, não confirmaram os mesmos resultados favoráveis. A maioria das investigações têm sido inconclusivas ou negam claramente a eficácia da homeopatia no tratamento de diversas patologias. Algumas têm mesmo demonstrado que o recurso a esta forma de “medicina alternativa” pode ter consequências nefastas em patologias suscetíveis de tratamento médico ou cirúrgico, ao atrasar ou impedir uma atuação médica curativa eficaz, bem como pelo seu potencial tóxico.
 
Conclusões
 
Numa conferência da New York Academy of Sciences, ocorrida em Junho de 1995, várias dezenas de conceituados cientistas norte-americanos, apreensivos com o crescimento das “medicinas alternativas” e a atração das massas pelo esoterismo e irracional, fizeram a defesa da ciência contemporânea. Esta baseia-se em princípios racionais e interligados, descobertos através de uma observação rigorosa e aplicação do método científico.
 
A atuação dos fármacos convencionais é disso um exemplo bem característico. De um modo geral, conhecem-se os seus mecanismos de ação. Podem atuar em recetores específicos, modificar o transporte celular, atuar como inibidores enzimáticos, como substitutos de componentes endógenos em falta ou ainda como quelantes. Por outro lado, os efeitos farmacológicos dos medicamentos dependem das suas concentrações no seu local de ação. Dentro de certos limites, quanto maior for a sua concentração, maior o efeito farmacológico resultante.
 
A avaliação do efeito terapêutico dos fármacos não se pode basear apenas na experiência pessoal do médico, altamente falível e subjetiva, nem na acumulação de experiências individuais ao longo do tempo, mas deve ser o resultado de rigorosos ensaios clínicos repetidos, cientificamente controlados. Porém, muitos homeopatas afirmam que os efeitos dos seus produtos não podem ser objeto de investigação científica, alegando as características subjetivas da prescrição homeopática.
 
Em conclusão, a homeopatia é uma prática pseudocientífica que não resiste a uma avaliação séria, rigorosa e isenta, com base no método científico, não devendo nunca substituir uma correta prática médica. A legalização da comercialização de produtos homeopáticos, no nosso país, desde Maio de 1995, imposta por interesses puramente económicos, constitui um retrocesso face aos valores que estão na base da Medicina e Ciência modernas.

04/06/10

EUTANÁSIA: UMA QUESTÃO PERSISTENTE

Subscrevo integralmente a Declaração seguinte, do Centro de Estudos de Bioética, sobre o tema antigo mas sempre actual da eutanásia.
 
Entre as questões éticas respeitantes à vida humana, a eutanásia permanece sempre actual. A morte provocada a uma pessoa, a seu pedido, tem sido apresentada, por alguns, como expressão de compaixão por quem sofre e como sinal de respeito pela autonomia do doente terminal. Ao contrário desta ideia que tentam banalizar, pertencemos ao grupo claramente maioritário para quem é inaceitável matar um doente, seja qual for a explicação que se pretenda dar para essa morte provocada O mais importante é fornecer-lhe todos os cuidados, de modo a tratar a dor e outros sintomas, de forma a proporcionar-lhes uma vida com qualidade, até ao fim natural. O direito comparado aceita esta posição, verificando-se a proibição da eutanásia na esmagadora maioria dos países.
 
Entre nós, num destes surtos cíclicos de abordagem da questão, o problema tem sido ultimamente de novo agitado, não faltando sequer propostas “fraturantes”.
 
Perante esta situação, o Centro de Estudos de Bioética, que foi pioneiro na análise e no aprofundamento deste problema, como aliás de resto em todo o esforço de difusão da Bioética em Portugal, entende dever pronunciar-se nos seguintes termos:
 
1. A vida humana é inviolável ( artigo 24 nº1 da Constituição da República Portuguesa. É pois, dever inalienável do Estado e da Sociedade tudo fazer para minorar a solidão e o sofrimento físico dos que precisam de acompanhamento técnico e humano de “consultas de dor” e de cuidados paliativos nas situações de doença grave ou de incapacidade prolongadas. O papel dos profissionais de saúde é o de proporcionar aos doentes toda a atenção necessária para poder dar-lhes uma vida com qualidade.
 
2. Para tal, urge implementar o direito de acesso a bons cuidados paliativos, como de resto existem já em Portugal , infelizmente em número claramente não suficiente para quem deles necessita.
 
3. A proibição da eutanásia na lei justifica-se pela protecção de um bem fundamental, que é o da vida do doente. Defende ainda o paciente de possíveis abusos de uma hipotética autorização para matar a pedido, mesmo quando ela não existe, como tem sucedido na Holanda (eutanásia involuntária de doentes adultos e mesmo de menores). Essa protecção é exigida pela ética médica, que seria gravemente comprometida se o papel dos médicos e dos enfermeiros que com eles colaboram, como garantes da defesa da vida, se transformasse no de prestadores oficiais da morte.
 
4. Nestas condições, o Centro de Estudos de Bioética exprime, através da sua Direcção, um parecer positivo quanto à mais rápida e total implementação da rede de cuidados paliativos, certo de que a resposta a um (raro) pedido de eutanásia é a compassiva e total prestação de cuidados, de modo a que o doente terminal viva em paz a sua vida até morrer. Esta é, na verdade, a morte medicamente assistida a que todos temos direito.
 
A Direcção do Centro de Estudos de Bioética: Jorge Biscaia, Daniel Serrão, António de Almeida e Costa, Michel Renaud, Vasco Pinto de Magalhães s.j.

01/06/10

O MÉDICO, Samuel Luke Fildes (1891)


Esta é, provavelmente, a pintura mais famosa representando a profissão médica. O seu autor, o pintor inglês Sir Luke Fildes (1843-1927), perdera o seu filho 14 anos antes, vitimado por uma das múltiplas doenças infecciosas da infância, para as quais não havia na época terapêutica eficaz.